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Soldadinho-do-Araripe, o guardião das nascentes

História por Gustave Axelson; Fotografado por Gerrit Vyn

Da revista Living Bird, edição de primavera 2018.

Para ver um dos achados ornitológicos mais interessantes dos últimos 20 anos, preciso ficar na fila. Na minha frente há um cara de camiseta regata e chinelos de dedo. Atrás, duas mulheres enroladas em toalhas de praia. Com elas, algumas crianças muito animadas, pulando para cima e para baixo, prestes a explodir de impaciência.

Eu estou animado, também, mas não pela mesma razão. Quando o parque aquático abre, às 10h da manhã, passamos pelas catracas e descemos pelo caminho principal. Depois de uma barraca que vende óculos de natação e golfinhos infláveis, a galera de chinelos segue à esquerda, em direção aos toboáguas. Eu quebro à direita, em um caminho vazio, calçado com pedras em meio à mata.

Quase imediatamente, começo a ouvir um chamado curioso vindo das árvores: piii riii, piri-piri. Alberto Campos, o biólogo que me acompanha, sussurra então uma palavra: Soldadinho!

Soldadinho-do-araripe é o nome comum de uma espécie descrita pela primeira vez em uma publicação científica há 20 anos. Rapidamente, entrou para a lista de aves mais procuradas pelos observadores do mundo todo que vêm ao Brasil. Endêmica e isolada, é uma conquista rara para qualquer life list: uma espécie que só pode ser encontrada em um fragmento de mata de 50 km de comprimento no interior do Ceará, no sopé da Chapada do Araripe. O principal atrativo da ave, no entanto, não é sua raridade, mas a sua beleza estonteante.

Outro canto cheio de energia vem das árvores, e a silhueta de um passarinho emerge entre galhos secos. Foco o binóculo em uma ave de plumagem branca reluzente, com um topete de penas vermelho-sangue, lembrando um oficial dos Dragões da Independência em seu uniforme de gala. O soldadinho olha para a esquerda, depois para a direita, me dando a visão do seu perfil e do penacho carmim vivo. Olhar para esse passarinho brilhante é um pouco como mirar o sol: pontinhos vermelhos ficaram estampados em meus olhos mesmo depois da ave ter voado para longe.

Um riacho borbulhante passa ao lado do caminho de pedras. Cerca de 400 m mais à frente, um grotão esconde uma nascente, fonte de água do ecossistema úmido e também do parque aquático mais além. Aqui mora o perigo para o soldadinho e a razão para que ele esteja na lista vermelha de espécies criticamente ameaçadas da IUCN  (União Internacional para a Conservação da Natureza). Tanto o passarinho como as pessoas precisam da água. Os soldadinhos fazem ninho perto dos riachos e vivem em florestas úmidas; pessoas contam com a água para todas as suas atividades – agricultura, saneamento urbano, parques aquáticos.

Mas o sodadinho e as pessoas aqui não são inimigos. Na verdade, o povo local celebra a sua existência: o passarinho pode representar a melhor chance de manter a água fluindo para a população.

As encostas da Chapada do Araripe abrigam um trecho de 50 km de floresta úmida – o único hábitat no planeta para o soldadinho.

Ave com crista de fogo

Alberto Campos teve sua própria experiência luminosa com o soldadinho em 2003. Ele dirigiu cerca de oito horas desde Fortaleza, capital do Ceará, para investigar os relatos de que havia sido descoberta uma nova ave na Chapada do Araripe. “A primeira vez que bati os olhos nele… ele brilha, sabe? A crista brilha como uma lâmpada vermelha”, ele lembra. “É uma experiência incrível e inesquecível”.

A primeira vez que bati os olhos nele… ele brilha, sabe? A crista brilha como uma lâmpada vermelha.
~ Alberto Campos

Naquela época, o biólogo havia acabado de fundar, com outros colegas, uma ONG chamada Aquasis, dedicada a proteger animais marinhos, como o peixe-boi e os golfinhos no Nordeste. Agora, uma década e meia depois, Campos me guiava numa incursão de seu grupo de conservação na Chapada do Araripe, a quase 500 km do litoral. Pode parecer estranho que uma ONG marinha tenha se tornado uma das mais ardentes defensoras de um passarinho florestal. Mas a explicação está na biologia da espécie – a ave conta com a água tanto quanto um peixe-boi.

Este video mostra um raro registro do ninho de soldadinho-do-araripe, com a fêmea, toda camuflada, alimentando a prole.
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Descrição do áudio: Sons naturais

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“Nós encontramos ninhos não exatamente na superfície da corrente, mas muito, muito perto, logo acima dela”, diz Campos. Segundo ele, ao longo dos riachos cercados de mata ciliar, o soldadinho constroi os ninhos em forma de uma pequena tigela entre os galhos que pendem à flor d’água.
Além disso, a ave de florestas úmidas vive no bioma da caatinga, uma região semi-árida sete graus ao sul do Equador. Para ser mais preciso, o soldadinho-do-araripe vive num oásis de floresta verde em meio a uma paisagem de arbustos secos e retorcidos na maior parte do ano, em uma região peculiar que se parece com uma floresta úmida de altitude nascendo no meio do sertão.

A água da chuva cai no topo da Chapada do Araripe, se infiltra no solo e se acumula no lençol freático. Então alcança as bordas e ressurge em nascentes nos lados da chapada - um processo que pode levar milhares de anos. Ilustração: Phillip Krzeminski, Bartels Science Illustration. Veja imagem em tamanho maior
A água da chuva cai no topo da Chapada do Araripe, se infiltra no solo e se acumula no lençol freático. Então alcança as bordas e ressurge em nascentes nos lados da chapada - um processo que pode levar milhares de anos. Ilustração por Phillip Krzeminski, Bartels Science Illustration. Veja imagem em tamanho maior.

Essa mistura é uma cortesia da chapada, palavra do português ancestral para planalto. O topo da Chapada do Araripe age como um receptor de água de chuva com 1 milhão de hectares: ela se infiltra no chão do planalto é armazenada no lençol freático abaixo. A água então ressurge em centenas de nascentes nos sopés da chapada, permitindo a formação de florestas úmidas. Pode levar milhares de anos para que uma gota de chuva percorra esse caminho, da poeirenta vegetação do topo até as fontes cristalinas nas matas de galeria abaixo.

O soldadinho ocorre apenas nestas florestas úmidas no sopé da Chapada do Araripe, numa área total pouco menor que a do Parque Nacional da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Como vive escondido em uma pequena porção de floresta na América do Sul, a espécie só foi descrita para a ciência no apagar das luzes do século XX, embora quase tenha sido descoberta duas vezes antes disso. Em 1860, um zoólogo do Museu Nacional (RJ) coletou 4 mil espécimes de diversos animais numa pesquisa científica na Chapada do Araripe. Esta coleção quase certamente incluía uma pele do soldadinho-do-araripe. Mas hoje esse exemplar descansa no leito do oceano: o barco da expedição sofreu um naufrágio no retorno ao Rio. Muito depois, em 1930, uma equipe alemã de geólogos, entomologistas e ornitólogos fez uma série de coletas pela área. Mas a coleção, depositada na Universidade de Friburgo, na Alemanha, desapareceu após um bombardeio na Segunda Guerra.

Eles alertavam o jovem Francisco … nem deixar o passarinho irritado, pois ele era o dono das águas.

Como costuma ocorrer, o povo local conhecia o passarinho muito antes dos cientistas o descreverem. Um antigo morador do Crato, aos pés da chapada, ainda se lembra dos avisos que recebia quando era um garoto que percorria as florestas com seu facão, na década de 1950. Agora com 77 anos, Francisco Xavier Rodrigues diz que na época os moradores falavam de um passarinho de cabeça vermelha que vivia nos riachos, o galo da nascente. Eles alertavam o jovem Francisco a não atirar na ave com seu bodoque, nem deixar o passarinho irritado, pois ele era o dono das águas. Se o bicho fosse perturbado, eles diziam, as águas parariam de correr.

Os rumores locais sobre um estranho passarinho de topete vermelho atraíram um estudante de biologia chamado Weber de Girão e Silva para a região da chapada em 1996. Ele foi convidado pelo seu professor na Universidade Federal de Pernambuco, Galileu Miranda Coelho, a observar aves nos grotões da floresta. Não havia o parque aquático na época, nem outras contruções ou rodovias, apenas uma trilha de terra ao longo do riacho.

O ornitólogo Weber de Girão Silva mostra o lugar onde descobriu o soldadinho-do-araripe em 1996. Vinte anos atrás a região era toda coberta por mata, mas hoje há um parque aquático no local da descoberta. Na pequena reserva particular em um canto do parque alguns soldadinhos ainda resistem. Photo by Gerrit Vyn
O ornitólogo Weber de Girão Silva mostra o lugar onde descobriu o soldadinho-do-araripe em 1996. Vinte anos atrás a região era toda coberta por mata, mas hoje há um parque aquático no local da descoberta. Na pequena reserva particular em um canto do parque alguns soldadinhos ainda resistem.

“Vamos para o ponto exato”, disse Weber quando me encontra no parque aquático – hoje ele é um ornitólogo de meia idade com os cabelos já ficando grisalhos. Ele pula uma cerca e sobe correndo pela encosta uns 100 metros, até apoiar-se em uma árvore. Um emaranhado de cipós desce em cascata pela rocha atrás dele, em direção ao riacho. Quando ele se apoiou na mesma árvore, duas décadas antes, fez o primeiro avistamento oficial do soldadinho para a ciência – justo o que entrou para a história.

“Nós vimos um passarinho branco voar entre as copas”, Weber se lembra, sobre o dia que mudaria sua vida. “Naquele momento o sol estava atrás da ave e a luz refletida no topete era como uma lâmpada, ou como o fogo. “O Galileu me perguntou: que diabos é isso? E eu respondi: não é um passarinho comum.” Então Weber lançou um olhar para o seu braço: “Eu fico assim, arrepiado, quando conto essa história!”

A notícia da descoberta foi destaque no jornal da cidade, mas a reportagem terminava com uma nota sinistra:

Embora desconhecido da ciência, a espécie já se encontra ameaçada. O lugar onde ela foi encontrada será transformado em um parque aquático, lamenta Galileu.

Lamentar era tudo o que eles podiam fazer. O parque aquático era um projeto do poderoso prefeito local. Ele foi construído em 2000, com a nascente do grotão fornecendo a água para as piscinas e toboáguas.

Weber ainda hoje fica perturbado ao lembrar de como tudo aconteceu, com a construção do parque aquático logo após a descoberta de uma nova espécie de ave. Ele se sentiu impotente para impedir os acontecimentos.

“Eu tinha apenas 20 anos de idade”, ele diz com pesar. “Era uma aposta perdida”.

Foi Weber quem procurou Alberto Campos na ONG Aquasis e o convidou a incluir o soldadinho-do-araripe no programa de espécies ameaçadas. Depois de ver a ave, Alberto concordou e contratou Weber como ornitólogo-chefe do projeto para salvar a espécie.

Uma grande parte do projeto é a atuação local. A Aquasis realizou diversas consultas públicas sobre a conservação do soldadinho – reuniões que tiveram a participação de representantes do Arajara Park, o parque aquático que surgiu onde o passarinho foi descoberto.

O Arajara é o único de cinco parques aquáticos da região que se envolveu no trabalho com o soldadinho, transformando a trilha para a nascente numa reserva privada e mantendo a vegetação nativa de árvores frutíferas e arbustos, que são vitais na dieta da ave. O parque também adotou o soldadinho como uma de suas atrações, recebendo grupos de observadores e vendendo camisetas com a imagem do passarinho nas lojas de suvenires.

“Se podemos colocar as pessoas em contato com o passarinho, com a natureza, queremos dar a elas essa experiência”, diz Caroline Sambaio Saraiva, filha do falecido criador do parque. Ela atualmente ajuda sua mãe na gestão do Arajara. “Há muitos parques aquáticos no mundo, mas você não pode copiar esta floresta. Penso que os dois podem conviver: o parque aquático e a conservação ambiental”.

Hoje o soldadinho-do-araripe persiste no parque e seu canto alegre é uma prova da capacidade da espécie de se adaptar, desde que as condições do hábitat sejam mantidas. E mesmo Alberto admite que o parque é um bom lugar para ver o passarinho.

“Em outros locais da floresta, o soldadinho fica muito alto, na copa das árvores”, ele diz. “Mas aqui, como as trilhas são elevadas, ele pode ser visto no nível dos olhos. É perfeito para fotos”.

Eu passei a tarde toda me deliciando com os soldadinhos por toda a trilha – até pude ver um deles num galho abaixo da passarela, permitindo observar como o topete vermelho-vivo desce pelas costas – e ouvindo o canto enérgico vindo do topo das árvores. Finalmente vou com Alberto para o restaurante do parque, tomar uma cerveja e comer salgadinhos de queijo. A música alta sacode o lugar, pontuada às vezes pelos gritos felizes das crianças no toboágua.

“Algumas pessoas a favor da conservação queriam remover o parque daqui, mas isso não funciona”, Alberto diz, franzindo a testa. “Mas, se pudéssemos parar a construção de novos parques aquáticos… Uma interdição, nenhum parque a mais, gerenciando os que existem de forma sustentável – poderíamos viver com isso”.

Alberto toma um gole da cerveja e aponta para um garoto descendo um toboágua e saindo pela boca de uma estátua em forma de dinossauro. Ele sorri: “esse parque faz as pessoas felizes”.

O General diz ao povo, ‘Protejam as águas!’”

Os parques aquáticos não são a maior ameaça ao soldadinho-do-araripe.

Para mostrar o que está drenando a floresta úmida que serve de hábitat para a ave, Alberto me leva ao lugar onde antes ficava a maior fonte de água de toda a chapada, a nascente Batateiras.

Nos anos 1850, Batateiras era um rio pujante. Hoje se transformou em um emaranhado de tubulações de PVC saindo de cisternas de concreto envelhecidas. Alguns canos são marrons, outros azuis, outros pretos. Juntos, eles percorrem um leito seco em direção à cidade do Crato.

A população da cidade do Crato cresceu mais de 30% nas duas últimas décadas. A procura por novas casas incentiva a abertura de novos bairros residenciais na direção da Chapada do Araripe - invadindo o hábitat do soldadinho. Photo by Gerrit Vyn
A população da cidade do Crato cresceu mais de 30% nas duas últimas décadas. A procura por novas casas incentiva a abertura de novos bairros residenciais na direção da Chapada do Araripe—invadindo o hábitat do soldadinho.

Parece uma instalação em ruínas. Muitos dos canos têm vazamentos; fontes de água em miniatura jorram de pequenos buracos. Muitas das torneiras das cisternas estão travadas com correntes e cadeados.

“Cinquenta anos atrás, havia muitas disputas por água aqui”, diz Alberto. “Pessoas se matavam quando alguém desligava as torneiras”.

Ele caminha entre os canos e se abaixa para um olhar mais atento à maior tubulação, com o diâmetro aproximado de uma bola de sinuca. Depois franze a testa e ajeita o boné branco, que usou durante toda a semana que passamos juntos. Eu sigo outro cano de PVC com os olhos, um bem fino, de cor azul, que se desvia do aglomerado e segue por baixo do portão de uma casa murada ali perto. O muro tem arame farpado e cacos de vidro no topo.

Por trás do muro eu posso ouvir vozes de crianças contando: um, dois três…

Provavelmente são garotos brincando de pique-esconde, talvez com os pais, que só querem garantir água para a família.

Você pode saber quem recebe a água pelo tamanho do cano de PVC. Os tubos maiores vão para os grandes proprietários de terras. Você pode identificar todos os estratos sociais aqui.
~Alberto Campos

“Você pode saber quem recebe a água pelo tamanho do cano de PVC”, diz Alberto, ficando de pé depois de inspecionar o aglomerado. “Os tubos maiores vão para os grandes proprietários de terras e os pequenos seguem para as casas pobres. Você pode identificar todos os estratos sociais aqui”.

Este é o principal adversário de Alberto Campos no trabalho de salvar o soldadinho-do-araripe. E não é tão simples como combater uma única empresa petrolífera, como a que ele derrotou na justiça para proteger o peixe-boi. Em Batateiras e outras nascentes da região da chapada, Alberto e a Aquasis enfrentam questões sociais.

A agricultura usa a maior parte da água disponível na região. Cerca de 70% da demanda por água vem das fazendas, principalmente para irrigação das plantações de banana. O uso doméstico é de cerca de 20% e os 10% restantes vão para empresas, incluindo os parques aquáticos.

Por lei, 20% da água que vem das nascentes deveriam estar fora do alcance da influência humana, correndo livres para permitir benefícios ambientais, como a formação de florestas úmidas e hábitats para a vida selvagem. Mas isso não acontece em muitas das nascentes da Chapada do Araripe – e certamente não é o caso de Batateiras.

José Yarley Brito é o encarregado da água de Batateiras e de outras nascentes da Chapada. Ele é presidente da Sociedade Anônima de Água e Esgoto do Crato, a agência que gerencia o saneamento na cidade. Mas ele prontamente admite que seu papel é proteger a água para o uso das pessoas, não para as florestas ou para as aves.

O co-fundador da Aquasis, Alberto Campos, mostra a nascente Batateiras, cercada de tubulações que levam água até a cidade do Crato. Foto: Gustave Axelson.
O co-fundador da Aquasis, Alberto Campos, mostra a nascente Batateiras, cercada de tubulações que levam água até a cidade do Crato. Foto por Gustave Axelson.

“Pela lei, minha prioridade é o fornecimento de água para as pessoas”, diz Yarley. “O passarinho não é prioritário, mas eu me preocupo com ele também”.

O dilema de Yarley é que sua agência foi criada depois que estes emaranhados de canos já tinham raízes nas nascentes de Crato. E, diz Alberto, a agência carece de recursos para regular a aplicação da água.

Ano após ano, há mais e mais pessoas que querem esse recurso. A população de Crato cresceu 34 % nas últimas duas décadas. Yarley encolhe os ombros para o que sua agência pode fazer em face desta crescente base de consumidores de água: “se mais pessoas estão se mudando para novas casas, isso não pode ser interrompido. A única pessoa que pode parar o crescimento populacional no Crato é Deus”.

Através da Chapada do Araripe, as fontes de água não abastecem apenas a cidade do Crato, mas também duas outras cidades vizinhas, a metrópole Fortaleza (a 500 km de distância), e o estado vizinho de Pernambuco (cortesia de empresas privadas que usam caminhões-pipa).

A Aquasis estima que mais de 2 milhões de pessoas dependem das fontes do Araripe para subsistir. E uma crise pode estar surgindo, porque a água está desaparecendo. Ao longo dos últimos 100 anos, centenas de fontes de água da região perderam uma média de 75% da vazão. Batateiras perdeu 36% de seu fluxo de água apenas nos últimos 12 anos.

E, no entanto, Yarley sinceramente acredita que há água suficiente para todos. O problema, diz ele, é que o uso da água não é sustentável. Banana é uma plantação muito exigente, diz Yarley. Ele pensa que se os agricultores mudassem para outras culturas não iriam utilizar tanta água. E mesmo se houver mais e mais pessoas, podemos aprender a ser mais sábios com o recurso.

Neste ponto, Yarley espera que o passarinho que não é sua prioridade possa fazer um favor à agência. Ele espera que a história do soldadinho, um pássaro em extinção totalmente dependente de água corrente, possa mover as pessoas a reconsiderar o uso da água, e abrir suas mentes para uma melhor gestão.

Yarley é um chefe de torcida organizada quanto aos esforços de Aquasis para a conservação do soldadinho.

“Para nós, o passarinho é um mensageiro das nascentes”, diz. “Ele é chamado de soldadinho, mas podemos dar um posto mais alto. Vamos dizer, um general. E o general está dizendo ao povo: ‘Proteja a água!’”.

Um novo modelo de uso da água traz esperança ao ecossistema

Para que eu tivesse uma experiência mais imersiva com o soldadinho – e mais próxima do mundo real do que a conveniência de um parque de diversões – Alberto organizou uma visita à Reserva Oasis Araripe.

A reserva tem 135 hectares, adquiridos com a ajuda da American Bird Consevancy, entidade norte-americana baseada em Washington. O terreno foi comprado em duas etapas: uma, em 2014, para proteger uma área de reprodução do soldadinho e outra, em 2016, que dobrou o tamanho da reserva. A ONG também cedeu fundos para a substituição do antigo canavial que havia no lugar, com o plantio de 10 mil mudas de árvores nativas. Mais do que uma simples reserva, a Oasis também é um tipo de experimento florestal.

Para um marinheiro de primeira viagem vindo do Hemisfério Norte, a selva dá a sensação de querer matá-lo a todo momento. Jiboias tomam sol na estrada toda esburacada que corta a mata, serpenteando morro acima  em direção à reserva. Uma vez dentro da floresta escura, há diversas árvores com espinhos crescendo no tronco. E mais cobras: ao longo da trilha, uma jararaca – uma das mais venenosas serpentes da América do Sul – estava tão camuflada encolhida entre as raízes de uma árvore que eu nunca a teria visto, até que fosse tarde demais.

Ainda bem que George a viu. George Leandro Barbosa é outro membro da Aquasis que serviu como meu guia durante a visita à Reserva Oasis. É um guia experimentado, que passou algum tempo entre tribos indígenas na Amazônia. E ele também vestia um chapéu branco, desta vez um de tecido, como o usado por pescadores. Quando cheguei à reserva ele checou se as minhas perneiras contra serpentes estavam ajustadas. Então entramos na floresta espessa, com cipós que pendiam da copa das árvores até o chão.

Seguimos por trilhas que correm ao lado das levadas, pequenas valas de irrigação que remontam às plantações de açúcar do século XIX. Um crash do mercado nos anos 80 fez diminuírem muito as plantações de cana na região, mas as levadas ainda conduzem água para os fazendeiros locais.

O biólogo da Aquasis Weber Silva estudou em detalhes o comportamento reprodutivo dos soldadinhos em seu hábitat, a floresta úmida. Ele diz que o topete vermelho do soldadinho macho vem dos pigmentos encontrados nos frutos vermelhos que a ave consome. A plumagem vermelha da cabeça tem um papel importante na seleção sexual. O macho se exibe em poleiros nas aberturas da vegetação, onde raios de sol incidem e
O biólogo da Aquasis Weber Silva estudou em detalhes o comportamento reprodutivo dos soldadinhos em seu hábitat, a floresta úmida. Ele diz que o topete vermelho do soldadinho macho vem dos pigmentos encontrados nos frutos vermelhos que a ave consome. A plumagem vermelha da cabeça tem um papel importante na seleção sexual. O macho se exibe em poleiros nas aberturas da vegetação, onde raios de sol incidem e "acendem" o topete vermelho-vivo.

Em duas horas de trilha pelas levadas, pude escutar o canto amigável do soldadinho em todos os lugares acima de mim – piii riiii… piri piri! Mas os meus olhos não podiam vê-lo, exceto por pequenos relances de algo branco voando ao longe. A floresta estava repleta de outras aves, no entanto, e muitas surpresas surgiam após uma investigação mais aprofundada. Um olhar atento para uma silhueta que lembrava uma pomba empoleirada revelou um surucuá-de-barriga-vermelha, com sua cabeça de plumagem azul iridescente. O som que vinha da água batendo nas pedras do córrego de repente tomou a forma de um rabo-branco-acanelado, um beija-flor de tamanho grande que mergulhava no ribeirão, subia e parava no ar como um helicóptero gotejante e depois mergulhava de novo, espirrando água para os lados.

Finalmente, vejo um flash branco vindo da ponte suspensa de cipós entre duas árvores. Foco o binóculo rápido o suficiente para ver o topete vermelho de dragão no alto da cabeça de um soldadinho.  Ele vira o corpo no cipoal, ficando de frente para mim e, então – piii riii – outro flash branco vindo de suas asas batendo e ele desaparece. O encontro inteiro não durou mais que cinco segundos.

Não por coincidência, estávamos ao lado de uma pequena elevação ao lado da levada, com arbustos e cipós pendendo sobre ela. Cerca de metade da água que vem das nascentes dentro da reserva segue pela levada para os fazendeiros vizinhos. A outra metade é canalizada.

O plano da Aquasis para a restauração do hábitat do soldadinho inclui plantar árvores ao longo da levada para permitir o aumento do fluxo de água, tornando assim a vegetação mais espessa. Isso pode aumentar a área propícia para o soldadinho em mais de 20 vezes. A ONG também planeja uma reengenharia nas cisternas próximas às nascentes, com um desenho mais moderno e eficiente. “Não teremos mais vazamentos, como em Batateiras”, diz Alberto.

Nós compramos a área para que ela sirva de modelo.
~ Alberto Campos

Ele prevê que o modelo da reserva Oasis, com um melhor gerenciamento das nascentes, irá melhorar o fluxo de água para os habitantes locais. “Podemos ter dispositivos de coleta de água e dispositivos de gestão da água. Acho que vai ser mais eficiente, e eu realmente acredito que podemos ter mais água ao pé da chapada do que temos agora. Isso é algo que iremos provar em talvez três ou quatro anos”.

Em vez de proteger o soldadinho-do-araripe cercando os hábitats da espécie na região, a Aquasis aposta em usar a reserva como um modelo de conservação da água – e por consequência também da conservação da ave.

“Nós não queremos comprar todas as áreas de ocorrência do soldadinho, todas as nascentes, isso seria loucura”, diz Alberto. “Nós compramos a área para que ela sirva de modelo”.

Yarley, da companhia municipal de saneamento, forneceu as licenças para a Aquasis reestuturar as nascentes da reserva Oasis. Ele está ansioso para ver o modelo ter sucesso, com a esperança de que possa levá-lo a outras fontes de água em toda chapada.

O modelo pode ser amplamente adotado,  diz Alberto. Além de ajudar na conservação da água, outro benefício é permitir que o soldadinho e outras aves que comem frutas retomem seus papéis do ecossistema (como a dispersão de sementes) e colaborem a manter as florestas úmidas. Mais matas de galeria melhorariam a retenção de água em todo o planalto, ajudando também a manter o fluxo nas nascentes.

É por isso que as pessoas que há décadas alertavam os meninos a não atirar nos passarinhos de cabeça vermelha estavam certas. O soldadinho-do-araripe é o guardião da água.

“O que fazer quando a sua área de estudo é inteiramente queimada?”, perguntou a pesquisadora Milene Gaiotti, após um incêndio florestal em 2015.

Pequenas vitórias, grandes contratempos

Milene Gaiotti não compartilha o entusiasmo e o otimismo de Alberto Campos e o pessoal da Aquasis. Pesquisadora da Universidade de Brasília que estudou a genética e as estratégias de conservação do soldadinho-do-araripe por mais de sete anos, Milena tem visto tantos locais de pesquisa destruídos que fica difícil ter muita esperança com relação ao futuro da espécie.

Em novembro de 2015, ela chegou à sua melhor área de pesquisa – uma nascente onde ela havia anilhado mais de 200 soldadinhos – e encontrou a mata pegando fogo.

“Os soldadinhos adoravam tomar banho por lá”, ela diz.

Um fazendeiro vizinho havia posto fogo para “limpar” uma área, mas o incêndio saiu de controle e atingiu boa parte da encosta. Milena não pôde fazer nada a não ser veu seu campo de pesquisa queimando. Ela desabafou em um post no facebook aquela noite:

É com lágrimas nos olhos que escrevo isso… eu encontrei os brigadistas agora, e são apenas seis. SEIS pessoas com baldes para controlar um grande incêndio… eu estou devastada!

Em toda a área de ocorrência do soldadinho-do-araripe – ao longo de apenas 50 km de encosta da chapada, onde a maioria da cobertura de floresta está sendo desmatada ou secando – a população total da espécie é estimada em menos de 800 indivíduos. Os dados se baseiam em pesquisas do Programa de Prevenção às Extinções da Birdlife International, conduzidas por Weber Silva, da Aquasis, entre em 2015 e 2016. A pesquisa apontou uma diminuição de 12% na população de soldadinhos na comparação com pesquisas realizadas apenas dois anos antes.

Indo fundo na pesquisa de Weber, o declínio de cada nascente onde o soldadinho se reproduz é uma conta no rosário de ameaças à espécie. O número de aves em um dos locais estudados caiu de 27 para 20 graças ao fogo, outro foi de 21 para 15 após a abertura de um condomínio e um terceiro caiu de cinco para apenas dois indivíduos após a instalação de novas tubulações que drenam a nascente.

O desmatamento para a agricultura é uma das várias ameaças ao hábitat do soldadinho. Muitas vezes o desmatamento é feito através de queimadas que saem do controle, atingindo uma área muito maior do que a prevista para a criação de gado ou plantações.

A ameaça mais imediata ao soldadinho hoje, de acordo com Milena e Weber, é o vazio que está se formando bem no meio da área de ocorrência da espécie. Há quatro nascentes neste espaço, mas a área foi degradada pela abertura de pasto para o gado e pela coleta de água para abastecimento. Apenas uma população de soldadinhos vive nesta faixa de 8 km de extensão. Se este grupo desaparecer, a distribuição comtígua na área será cortada em duas, com as populações das extremidades correndo o risco de ficar geneticamente isoladas – o que acelera a possibilidade de extinção.

A Aquasis está respondendo a essas ameaças da maneira que pode e consegue. Contratou brigadistas para ajudar os bombeiros locais. Realiza campanhas de conscientização em comunidades próximas à Chapada do Araripe e consulta com proprietários de terras para conquistar áreas de proteção para os soldadinhos. Quase todas as semanas, Alberto e Weber se reúnem com algum funcionário de governo (em várias esferas de poder) sobre a situação de conservação do soldadinho, um lobby contínuo para conseguir ajuda, mesmo que às vezes isso pareça não trazer grandes avanços.

Houve pequenas vitórias na relação com os governos, embora seguidas de grandes contratempos. Em 2007 a Aquasis realizou pesquisas de hábitat em toda a Chapada do Araripe e apresentou mapas e uma proposta aos líderes governamentais para proteger totalmente as encostas. O plano obteve rapida aprovação nos níveis local e estadual e parecia que iria resultar na criação de uma área totalmente protegida pelo Ministério do Meio Ambiente naquela época. Mas então sobreveio uma crise econômica, seguida pela troca de governo e o plano da Aquasis foi por água abaixo.

Foi essa experiência desanimadora que levou a ONG a mudar de estratégia e criar a Reserva Oasis como um modelo. Mas alguns vizinhos são resistentes à mudança

O lugar pode ser perigoso, violento. Masé por isso que estamos aqui.
~Weber Silva

Após a compra da reserva, Weber traçou um plano de renovar as cisternas nas nascentes e distribuir de modo mais eficiente a água através das levadas. Ele começou o trabalho construindo um pequeno projeto piloto, um novo sistema de tubos para alimentar apenas uma das levadas. Depois de pronto, não demorou para que o sistema fosse destruído e os canos, arrancados.

Silva procurou nas fazendas vizinhas por alguém que pudesse empregar para ajudar com o projeto-piloto. Com isso, se espalhou a notícia de que a Aquasis estava tentando mudar o sistema de abastecimento de água por ali. Seja quem for o responsável por destruir os canos, nem mesmo deu chance de ver se o projeto iria funcionar, para o bem o para o mal. Destruíram a ideia antes dela ter tempo de prosperar.

Enquanto Weber verificava os canos arrebentados, o trabalhador contratado disse que ele era um homem de sorte. E contou que, quando criança, ele viu o pai recuar sob a mira de uma arma durante uma disputa pela água.

“O lugar pode ser perigoso, violento”, Silva diz com um suspiro desanimado, enquanto me conta essa experiência. “Mas…”, falou, cravando os olhos em mim, “é por isso que estamos aqui”.

Grafite que homenageia o soldadnho-do-araripe em um muro da periferia, na cidade do Crato.

Um espírito com cabeça de fogo se torna uma celebridade local

Em minha última tarde no Crato, vou à cidade provar uma feijoada. Enquanto cruzo a praça central em busca do restaurante, percebo que há soldadinhos-do-araripe por toda parte.

Uma ave de cerâmica como enfeite na porta da sorveteria. Um adesivo com o soldadinho colado no vidro de um táxi parado no ponto. Uma pintura mural como tributo à espécie na fachada de uma lanchonete.

Dez anos atrás a Aquasis lançou uma campanha de relações públicas para estimular o orgulho local pelo soldadinho. A secretaria de turismo da cidade encampou a ideia e tornou a ave um símbolo oficial da cultura do Crato. Agora o espírito das nascentes de água da chapada, com seu topete de fogo, voa nas canções que se ouvem nas ruas e na arte urbana dos muros da cidade. Uma fotografia do soldadinho foi pirateada e apareceu até mesmo em um outdoor que anunciava a construção de um condomínio – justamente o tipo de empreendimento que ameaça o hábitat da ave.

Alberto Campos reconhece que há um descompasso entre o conhecimento sobre o soldadinho e as ações práticas da população para preservá-lo.

“Há dez anos, ninguém sabia o que era o soldadinho-do-araripe. Agora é uma celebridade local”, ele diz. Mas se levou dez anos para as pessoas conhecerem a ave, serão mais dez anos para convencê-las a mudar o comportamento e a preservar de verdade as nascentes e a floresta”.

E assim a vida segue para Campos, que conclui: “Eu era um biólogo, depois virei um biólogo conservacionista. Agora eu me sinto como um cientista político”.

Seu colega Weber Silva já participou de 10 comissões de planejamento, em diversas jurisdições. Ele continua a viajar a Brasília regularmente, desde que recomeçou as conversas sobre a criação de um parque nacional na Chapada do Araripe.

À esquerda do soldadinho, as palavras escritas com spray fazem uma defesa da conservação. Foto: Helio Filho.
À esquerda do soldadinho, as palavras escritas com spray fazem uma defesa da conservação. Foto por Helio Filho.

Na cidade do Crato, há um novo prefeito. A Aquasis, junto com Yarley Brito, da companhia de saneamento, trabalha junto com o novo Secretário de Meio-Ambiente da cidade para criar uma área municipal de proteção, que incluiria 40% da população atual de soldadinhos. O secretário também concordou em aumentar a brigada de incêndio e reavaliar a política da cidade para o uso de cisternas e tubulações nas nascentes.

Alberto é cauteloso: “eu não acredito muito nas promessas dos políticos”.

Weber ainda não está contente: “Tudo o que fizemos até agora eu considero um grande trabalho, mas ainda não é o suficiente para livrar a espécie da extinção nos próximos 15 anos. Acredito que é possível salvá-la, mas vai ser necessário trabalhar o dobro.

Em dezembro de 2017, Weber comemorou o vigésimo-primeiro aniversário do dia em que ele descobriu o soldadinho-do-araripe para a ciência. Ele completou 42 anos e tem trabalhado todos os dias para salvar o soldadinho desde o primeiro dia em que viu o topete de fogo brilhante voando, o que significa metade de sua vida. Ele é um homem assombrado pelo passado, que se sente compelido a fazer um futuro melhor para o soldadinho.

“Uma vez me perguntaram se eu me sentia especial ou predestinado por ter descoberto uma nova espécie”, ele diz. “É bem o oposto. Eu tenho perguntado a mim mesmo: ‘O que eu tenho de fazer para fazer valer esta honra, para merecer ter descoberto o soldadinho?’”.

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